quarta-feira, 30 de novembro de 2016





















Desproporção de pesares
Entre agarras roxas, amarelas, vermelhas
Corpos pluriformes alongam-se
Pela perscrutável via
Irremissível abismo
Entre névoas brancas
Agravam antebraços em pinças e abaulados
Retardam o céu do chão
Mas o cimo se faz presente
E a fera avança

Poema de Marcela Cividanes Gallic 
















Noturna, a letra é chama, cinza e névoa.
Língua-enigma em ofídica metáfora.

O leitor, meu igual, perfume hipócrita.
Balouçar de jardim suspenso a página.

O súbito, um sensível esqueleto.
Lupanares as pedras ametistas.

Tão sob a mira prenhe dos obuses,
o olho lê, se sabendo a arco-íris.


Um poema de Guilherme Delgado
















fome verde
maritacas na mata
bicando mamão


Haicai de Yara Darin
























Poema de Guilherme Delgado

ETERNO MOMENTO



Procuro-te em céu e mar,
Desenho-te em chuva e vento,
Pra em teus braços madrugarSenhor do meu pensamento.

Poema de Elischa Dewes

MICHEL












A serpente. Sem o que dispo o corpo negro à parte disto: quente, e, no entanto negues, és.
Que dissestes abrir uma clareira.
Um curumim de fogo ateia fogo e abre uma clareira, para a ave que se possa à morte ser comida. Pois é de fogo a sorte a dar conta desta trama, parte lama, parte contagem ou coragem de povos à lama, de pele branca a anca e íris-lama.
Então serpente: convívio.
Convido para o charco. Estou perto e atento muito ao membro fraco. Ao membro conjugado ao corpo da ave murcha. E leio a mesma carne, a coxa, que frouxa de forcejos tanto; que vista ao rasgo azul traçado àquele manto santo, adoraria. Mas que de adorada assume ainda o lugar inverso.
Pois é desejo o charco em que estás imerso.
Em que encontro a ti o teu pescoço quente; em que, no entanto negues, abro a ferro uma clareira tua nuca, parte nunca, parte parte disto. Que não há fogo que se me recuse empréstimo ao lacerado ouvido. E em abrir por sobre as costas mais de uma gaiola, e em fazer entrar ali a tal serpente, como a erguer o novo decreto de teu grito, és ave, que se possa à morte ser comida.


Poema em prosa de Caio Graco Maia

UMA BALADA DE CHOPIN


















São dois córregos;
um: caudilho.
em que não haja perda
para o tapeçário,
faz armário
forrado ou asilo
que se guarde a peça
à pele de algum filho
(mãe esquerda)

segundo córrego
arcaneja;
olho ou cancro
desmedido, o escriba
à faltosa tinta
de outro o filho raspa
a testa: códice que
emende a antiga seita.
(mãe direita)

Poema de Caio Graco Maia

MAS HOJE AINDA NÃO















Sempre chove no dia dos mortos
já são três horas da tarde
e hoje ainda não choveu.
O Captain! my Captain! Rise up and hear the bells.
Hear the sound of silence as well.
Sempre chove no dia dos mortos
mas hoje ainda não choveu.

No limiar do outro mundo
em fila eu vejo os meus
que antes de mim se encantaram.
O Captain! my Captain!
Sempre chove no dia dos mortos
e os olhos dos céus se nublaram
mas hoje ainda não choveu.

E se antes do fim do dia
a chuva me alcançar
não encontrará casa limpa
nem mesa posta também
e nada estará no lugar.

O Captain! my Captain!
que o poema encontre os versos
que dizem de aproveitar
o dia que já se finda.
Pois sempre chove no dia dos mortos
mas hoje não choveu ainda.


Poema de Gerusa Leal

MOMENTO
























O espelho que me interroga evoca antigo retrato
no quarto deserto, inundado por oceano de aço,
onde correntes de versos vazados a faca se esvaem
em cartas não escritas, laços frágeis,
pássaros feitos pedra em pleno vôo.

Nostalgia de percorrer estradas
sem rumo certo ou prazo de chegar.


Poema de Gerusa Leal 

domingo, 6 de novembro de 2016

PROMESSA












Estarei ainda só
quando a lua metálica
despojar-se de seu brilho.

Como espectro ou nódoa
na pétrea pele do solo
ou na epidérmica erosão.

Meu silêncio será quebrado
em troca de um olhar, do riso
ou da tua face de silício.

Guardarei a alma
no espelho do tempo
em sulcos de argila e cal.

Pois tudo é movimento
que carreia amor e pó
minério ou perdão.

E o que se vê é menos
que vértice, pedra, vento
ou humus que cobre o chão.


Poema de Marcia Tigani

quarta-feira, 2 de novembro de 2016






















Luz de setembro
Grito de quero-quero
Espicha a tarde

* * *
Pátio com zabumbas
Galinha degolada
por minha avó

* * *
Luz da manhã
Sombra cresce nos muros
Cedo perdi a fé

* * *
O sol esquenta as lajes
Queima a sola dos meus pés
Não vou ter filhos

Haicais de Marlova Aseff
















Leio em braile o texto adâmico
gravado na pele do desejo
sorvo das tuas mãos em concha
a improvável luz da lua cheia.

Fragmento de um poema de Marcia Friggi

ANÁTEMA
















Ainda criança foi me surgir um cisto feito til, amável embora, repetindo lições de cristo. Em casa de mamãe, a demostrar eficiência, quis me impregnar o credo (em garganta desocupada, e isto é certo, cabem tantas coisas como um toco, uma cruz ou cabra). Não quis falar. - Eu insisto! Então disse ao corisco que algumas dentições resistem ao tempo, mas a dentição do cristo resiste a nada: cordeiro em restos comido em mar e vento: poeira-ossada. Chamou-me poeta morto em cavado deus. Mas disse que se quisera a distinção armar-me inteiro de profano, afronhado acomodável, deveria por penitência eleger a exumação, e, escolhendo um ou outro cadáver espesso, que esse mais que espesso se espessasse, como que à roda da danação resultasse o acrescimento. Espesso til de entendimento! Tornei a vê-lo tempo e tempo, irrespondível que estivera, poética sobre poética, muito duro e endurecendo. Até que um dia, por enjoo e febre aguda, fui ter com um sabre em sua nuca: e um cristo manicômio, de riso deletério, veio a ter comigo para um último remédio: "contra os braços do poema, melhor empregar o ferro"

Poema em prosa de Caio Graco Maia

RÃS


















arrastos que a erosão destrói
lapso de tempo em púrpura
suculentas bromélias
derramam o mel extirpado
sapos em céu de estrelas
aleatórias sementes de cabala
mastigadas em saibo de sal
anestesiam linguas
onde magnólias vadiam
predadores abatem girinos
quartzo de azul citrino
fincam além das artérias
fluídos gélidos de sangue
enquanto serpentes desvestidas
escondem-se em turvas águas

Poema de Yara Darin
















Rosa incendiada
Ao sol do meio dia
E eu à flor da pétala.

Poema de Marcia Friggi

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

COLAR DE ABSINTO



do colo ao quadril adorna
e flamba a carne
adereço que a restaura, abjurada
em chamas.
formoso é o pescoço
e as sete vértebras
que o estende aos ares:
lava. pira. serpe.
o pescoço de labirinto e de fogo
por onde ardeja, verde
o absinto que me trazes.
a losna-maior farfalhando
como folha (em nervuras e exílio),
teus delírios.

FESTIM

louca, sim
variada no tempo
saltada de dentro do jarro
como nenúfar, lava
palhaço de molas.
ossos sobre restos.
a fome diária e contumaz
dos ossos como festos
sentenciando a carnadura
fremindo o sal, o veio
o passar do poema pelo sangue.
atirou-se sobre ela, um dia
o amor
puxando-lhe o braço, a albumina
o cálcio, o nutriente
a bacante e a sua boca
de tremores.

Poemas de Iolanda Costa


Ah esses teus dedos de efusão de coco pula pulando num dois mais dois de cá pra lá, alonga o grelo antes quieto imperceptível. Se tivesse pelo menos duas bocetas uma de cada lado das coxas internas transversais para conseguir absorver tudo que evocas, os cheiros de pachuli, gardênia e pêssegos, os gemidos de lua-selvagem na estação dourada de noite de lua cheia. Urros e tapas. Lobos e mariposas correndo nus pelo corredor do apartamento.

Prosa de Grazi Brum (fragmento)


diante do mar
areia sobrepõe infinito.

fragmentos de rochas
aguardam, ondas jazem.

sou o azul das conchas
a canção dos quatro ventos.

afogo-me em memórias
de lábios beijados

enquanto deuses marinhos
adornam a mansa serpente.

Poema de Yara Darin

COGITO



Júpiter transitará Saturno
e tudo será refletido.
Os acontecimentos do mundo
caberão na sala, entre
um supérfluo e outro
uma taça, um círio
Gorki e os poetas russos
o inglório e concuspicente
idealismo dos homens.
Nascemos para estarmos juntos, senhor
alinhados entre planetas
distantes e constantes
constelações, não importa
o que nos distanciem. Os astros libram.
Poema de Iolanda Costa

ESBOÇO



Vocês estão todos mortos : ossos
sombras
sentidos
Engrenagens que o vento ressecou
Olhos que o tempo só recicla
Como velhos papéis rasgados
Banalidades inscritas na fresta
Tonalidades que o vento não decifra
Meras construções de pedra.

Poema de Marcia Tigani

DO AVESSO



nego a cor
o outono
o tigre,
nego a faca
o deserto
a fome
só não nego
o nada
do dia
macio
(a carne
em ponto
cego)

Poema de Bruno Gaudencio

APL



I
uma rima
de aula
esgana:
um esgar

vou terminar
em lama
jaula
ou jazida

sem amar
ana
paula
de lima

II
agora o estribilho
( depois de experimentar certo esquema de rimas):

rasgo relatórios de risco
etiquetas, etceteras
asteriscos***

pra ser teu chão: me ladrilho
-mais veludo que frio-
de qualquer coisa mais quente que brilho
me humilho sorrindo
e não tenho vergonha
de dizê-lo sorrindo
que é o mesmo que fazê-lo
sorrindo

estribilho:
rasgo relatórios de risco
etiquetas, etceteras
asteriscos***

vou te servir meu fígado
patê de ervas finas
ser consumido na sua língua
safra mais farta de salivas
enfermo da sede
perdido no sermo
hermético
(mas ermo de sílabas)

estribilho:
rasgo relatórios de risco
etiquetas, etceteras
asteriscos***

minha boca
sua latrina
sorriso

Poema de Gustavo Vendrame

REST IN PEACE



Restaram poucos recortes
na contraditória composição
deste mosaico.
Ligação inversa
colada em papel frágil
no fundo,
há muito instalada.
Arquétipo falido
fragmentos policrômicos
mera modalidade decorativa.
Lápis - lazúli
cenas de um teatro
cotidiano.


Poema de Maria Martha Nardi de Godoy

BRASIL



as rãs de teu nome não saltam:
coaxam como sapos, anãs
coaxam como rãs, a fêmea
muda que não coaxa
a língua longa que não alcança
o acento, o inseto, o insulto.
temem o enxame e o brejo
em brasa, o andar de cócoras
e dormem úmidas
no interior das bromélias.

Poema de Iolanda Costa


Citrin é um velho xamã
que vive na Califórnia.
Ele é aturdido.
Ele escuta vozes.
Ele faz temazcal como um guarani.
O bruxo, como a bruma
busca a luz, o fogo
a pedra ardida no meio da tenda
- seu inipe de copal e alcaçuz
sálvia e cedro, suando-lhe
as evocações.
Seu chapéu é de um feltro
preto encorpado de abas longas.
As vozes violam as abas
a tuba o nervo o estribo o labirinto
de seu ouvido sobre o mundo
do zumbido do mundo em seu ouvido
do mundo zunido sob a aba.

Poema de Iolanda Costa

DOR



Se já não estivesse na carne
estaria, certamente
nas folhas de vermelho translúcido
das amendoeiras.

Poema de Iolanda Costa

CANTIGA PARA CAMÕES



Ok, doeu. Vamos falar de amor.
Amor é fogo. Tanto já foi dito,
Poetas já esgotaram decassílabos,
E ainda insistem nisso. Vê lá, ô.

Depois reclamam: "ai, hoje não tô
Pra jogo. O coração anda doído".
Enquanto isso, o Universo: nem aí.
E a cerveja esquentando... Qualé, pô?

Servir a quem vence? Coisa de mau
Vencedor. Antes o Sr. Camões
Não perdesse o olho, mas, sim, queimasse

A língua. Nos prestaria um enorme
De um favor: ninguém passava vontade
E largavam logo de chororô.


Poema de Guilherme Delgado

HELIANTOS III



Pergunto-me de onde vens, a que astro pertences. Se és o mesmo que proferiu o urro do bicho raivoso. Se és aquele que pediu clamor à deus num gozo de boca erguida. Se és quem de súbito mordeu meus vícios, arrancou os pelos eriçados da cona, estilhaçou meus tímpanos com teu estrondo de trovão. 
Acordei. Ninguém ao meu lado na cama, mas não estou louca, sei que estiveste aqui. O vapor de chypre das tuas pétalas amarelas toma conta do quarto, conheço esse perfume alucinógeno que me fez proferir as juras intensas da sempre aguda palavra de amor. Exageros, sempre somos exagerados nessa hora, para no instante próximo flagelarmos o coração por medo de ver se esvaírem os gemidos meus, teus. 
Agora o que resta é te procurar num desespero febril. Voltar a campos de Heliantos, mesmo nesse tempo indefinido e estéril, mesmo que ainda mês de agosto, mesmo depois de beber todo o vinho do porto. Que angustiante alquimia me vem aos lábios, a vontade de te dizer vamos foder hoje, e acabar com esse mistério de chupar ou não-chupar nossas essências, pois são elas desveladas que consolidam por final quem somos. 
Não penso em mais nada e não me perdoo por essa fraqueza que me destroça as ideias. Se ao menos tivesse coragem, amarraria com cordas de aço as mandíbulas estateladas que não param de berrar na minha cabeça. “Volte a Heliantos, ele está lá, está lá”, dizem-me com suas vozes canalhas e a cada novo surto me deixam ainda mais sedenta por encontrá-lo. E passo a engolir o teu sarcasmo, essa mania tua de falhar a minha memória e confundir meus cheiros. 
Sobre esse lençol de girassóis, nosso suor me acelera. As marcas dos teus dedos, dos teus dentes, nas minhas coxas, nos meus seios. O sangue embriagado de um coração faminto. Levo nas mãos uma verdadeira tempestade que me trespassa em gritos, em gritos: “eu vou à Heliantos, eu vou à Heliantos.”

Prosa de Grazi Brum 

terça-feira, 18 de outubro de 2016



violinos que miam

últimas horas dessa cronologia
obsoleta
travessia de tempo retirado.
nenhuma praia do sul
arderá em mim
mais que a poesia torta
encurvada em pélvis
e em pêlos
- nossos sais.
a poeta, o colchão
o violino e seus miados

poema de Iolanda Costa


Águas turvas
Contorno de morada
Silêncio azul reflete bordas
Afogam palavras
Desmesuram vícios
Nado no claro espaço
Dissimulado em corpo cristalino

Poema de Marcela Cividanes Gallic

CENÁRIO



Movimento dos astros
Vertigem das marés
Água-viva
Profusão de algas
- Floração -
Espraiar de conchas
Inundadas de sede
Incêndio no céu
Água que desaba
Leito láteo
Laivos de sêmen


Poema de Maria Marta Nardi de Godoy


A palavra, essa coisa verdade-mentira que nos abraça, nos impõe, nos consome. A palavra nos avisa, mas também nos engana. E a palavra ficção sempre desdiz o que acabou de dizer. A palavra catástrofe-esperança, o maior mal da humanidade. A palavra desejo é molhada, possui alas e cauda para nadar contra seu próprio rio. A palavra mulher mana da carne um beijo, uma música, um sorriso, ou uma flecha de sangue. Sempre é palavra decisão. A palavra escolha, testemunha da realidade que provavelmente não somos. A palavra cigarra, um zunido-melodia que lá longe nos avisa da morte. A palavra que procura seus disfarces, junto ao fogo, ao ventre, a beleza e a certeza do solstício. A palavra retorno, de um sol que se aproxima, um equador que inflama e que traz o quente vapor daquilo que é por fim o ideal - a poesia.

Texto de Grazi Brum


Dileto na gema,
o olho (côncava
calota), nepente

detida: Vulva e
Ânfora, Tampa e
Viço – cerosa,

captura; inseto:
mastiga. A Bu-
ñuel, bainha.

Poema de Guilherme Delgado

EFÍGIE



A imagem convexa
que o espelho estanca
em lágrima e riso
( assimétrica sanca)
expõe a sombra mais
oculta do impreciso.

Engole a real face
nua e opaca
a égide de metal
que reflete fria,
a carcaça insossa
sem rima ou marca especial.

Elíptica forma de elegia
amorfa e egressa
dos signos da noite
ou da luz efêmera do dia.
Serpente despida (ou devassa?)
na forma original de uma promessa.

Poema de Marcia Tiganni

ROTA DE HELIANTOS



Não seria um milagre caso desvelasse a rota desse destino ignorado? E se na hora derradeira enxergasse com lentes precisas água, terra, fogo e ar, entenderia então que é esse tempo impiedoso o mais absoluto dos elementos. Em que trilha seguir? Em qual dos mapas Campos de Heliantos aparece? Nem na argila, na madeira, nas peles de animais ou nas rochas, é possível decifrar o desenho do teu paradeiro. Tua cartografia foi perdida e eu lançada à deriva na imensidão de um oceano, sem cordame, nem timoneiro. Um tombadilho desgovernado. 

“Tragam-me uma bússola”, implorei ao atravessar a linha do equador e vi a tripulação correr em busca de um nada. Nas mãos apenas um bilhete de partida. E eu, a certeza que o porto é um pôr do sol num mar povoado de dragões e sereias, o itinerário de aves no final de um dia de solstício, a cauda de uma baleia em ziguezague à frente da proa. Meu porto é a sucessiva busca do girassol pelo seu astro. 

No céu, crepúsculo vermelho, prelúdio de raios e trovões, monstros marinhos, sismo submarino, ninguém está a salvo, mas eu, equilibrista, finco meus pés no tablado, resisto ao desmoronamento das águas. Uma temporada no inferno e, por fim, tropecei na sombra do meu próprio esqueleto e fui ao chão com a mandíbula em riste. 

Se não encontrar Campos de Heliantos serei condenada a minha mais cruel liberdade.

Prosa de Grazi Brum


ELEGIA

a criança alada com um archote caído
veio da Antiguidade
mítica. a doença inventada
pretexto de zodíaco atravessado
no tempo.
- o signo em desalinho
netuno em seu percurso.
a criança alada levou a criança sã:
invejava-lhe o vestido
invejava-lhe a mãe
invejava-lhe o colo.
ofereceu-lhe a morte
e uma de suas asas.

Poema de Iolanda Costa



punhado de linhas emaranhadas
negro retinto da noite

nós entrelaçados no corpo
quebra-cabeça do tempo

vidraça perpendicular
silhueta em lua crescente

enflorescer de lavanda
universo em devaneios

muro áspero, sombra vagando
cacos agudos de garrafa

escoa o sangue pelas pernas
ponta de palavras alinhavadas

transpõe frases sem nexos
reflexo em janela fechada

Poema de Yara Darin


silêncio onde brota a semente
um sonho transpõe o gozo

contorno irregular da face
palidez refletida no espelho

navego em hora sem tempo
cabelos revoltos, batom nude

desvendo curvas no ventre
traço linhas cruzadas no ar

selva epilética, corpo quente
algo derrete em mim

o quadro na parede
abisma-me,

o que faz uma mulher
dentro de uma pintura?

Poema de Yara Darin


um imenso e excessivo deus
que não se escreve, desses
que não intermediam o voo às longas
asas ou complementam a tela
a rara flor.

trazemos nos dedos, no decalco do
continente e sua cartografia de
oceanos e não o alcançamos.

invocamos no rito, na
frase em sânscrito
bem pronunciada
e não o traduzimos.

anticosmogônico.
imenso e excessivo, desses
que se esgueiram de palavra
e genuflexões
e a tudo frena.

Poema de Iolanda Costa



O vento assovia nas folhas de jasmim-de-rio um som sestroso de entardecer da selva, um perfume se espalha por todo o caminho, um cheiro muito gostoso, só não mais cheiroso que aquele da pele de Zé Bidela, quando no meio da noite, em emaranhado de cipós e liames, jenipapamos até o dia clarear.

Prosa de Grazi Brum

hermética



as bruxas fazem ciência
e vaticinam. seus
óvulos trópicos esperam
a terra adorada, a que não vem
o ventre invertido que não gera.
vertem seus mênstruos, a cada lua
e buscam a si
como oroboros loucos
e dissidentes.
“Toda quintessência é uma pedra
que não é pedra”, dizia Maria
(a de Alexandria)
a que calcinava enxofre e cobre.

Poema de Iolanda Costa 



Não seria um milagre caso desvelasse a rota desse destino ignorado? E se na hora derradeira enxergasse com lentes precisas Urano, Ponto e Óreas, entenderia então que é esse tempo o mais absoluto dos deuses. Em que trilha seguir? Em qual dos mapas Campos de Heliantos aparece? Nem na argila, na madeira, nas peles de animais ou nas rochas, é possível decifrar o desenho do teu paradeiro. Teu portulano foi perdido e eu lançada à deriva na imensidão de um oceano, sem cordame, nem timoneiro. Um tombadilho desgovernado. 
“Tragam-me uma bússola”, implorei ao atravessar a linha do Equador e vi a tripulação correr em busca de um nada. Nas mãos, apenas um bilhete de partida. E eu, a certeza que o porto é um pôr-do-sol num mar povoado de glaucos e gaias, o itinerário de aves no final de um dia de solstício, a cauda da cachalote em ziguezague à frente da proa. Meu porto é a sucessiva busca do girassol pelo seu astro. No céu, crepúsculo vermelho, prelúdio de raios e trovões, abalos de titânides, sismo submarino, ninguém está a salvo, mas eu, equilibrista, finco meus pés no tablado, resisto ao desmoronamento das águas. 
Nessa temporada no inferno, um piano toca. A música vestida de seda e de morte desnorteia o convés. A gente mastiga o cansaço e atira-se a triturar o desespero na boca de um tubarão. Os caninos, as lâminas latem e, por fim, tropeço na sombra do meu próprio esqueleto, tombo com a mandíbula em riste. E vejo o sangue, o medo, o sal-saliva e eu, celulose, lasca de cortiça contra as ondas do mar de feras olímpicas. Não, não me afogo fácil. Fogo. Fogo! Gente que corre com a estupidez paralisada. 
E eu amarrada ao meu pedaço de sobrevivência. Flutuo aturdida nesse mundo desconhecido, entrecruzo a loucura na rota das linhas loxodrómicas. Um som surdo de solidão.

Prosa de Grazi Brum 


Na rede de pesca, encarnado um santo oscila. Vem e vai, põe e tira o posto corpo. Na côdea de gordura se comprime outro santo - menos movente, no entanto - atordoado à novidade de um escamado rosto. E bem ali, sob esta face ainda, aérea quase e horrível, uma hérnia a um terceiro santo faz visível. Este, tísico. O último santo olha para o primeiro, e embora sejam o mesmo se envergonha. Vendo-o debater-se inutilmente pensa que mais vale a escama à carne que sempre a outra carne torna. O primeiro, em posição inversa, para a crosta a definhar-se em defunta, pragueja e mesmo detesta a doença desta parte imunda. 
Mais acima um cristo-gênio, meditando com o cardume, nota a empenhada sanha que suas partes assumem. "O ódio o santo e o peixe resume". E de se aproximar um papa-breu, a bocaça uma bacante, ama as cinco mil filhas daquele humilde errante: "Com que gozo sua prole comeria este negrume!".

Poema em prosa de Caio Graco Maia

RETRATO DE UM POVO



geração de chumbo
corpos de lama
oprimidos em cada célula

lâmina de foice
fios de faca afiados
chibata de sete nós

democracia do medo
olhar latifundiário
fortuito sabiá-do-campo

terra vermelha sovada
lavradores sem teto
útero fecundo à semente

estrelas da eternidade
aos olhos do camponês
tudo parece alegoria

pés carcomidos
cicatrizes que sangram
morrer é nada

o nada persiste.

Poema de Yara Darin

ESPELHO



Verde signo.
musgo mapa de vapor.
Imagem escorrida,
presa ao espelho.
Olhos fundos de infinitos
observam-me desafiadores.

Do canto da boca
escorre interrogativo
rasgo de riso em roxo,
curva de figo em calda,
voz em lira muda,
Questiona-me - Questiono-te :

- Até quando?

Fechamos a porta,
o punho, o peito,
a usina de utopias.
Varremos chama anoitecida
sob íris cinza - cinzas.
Cerramos o olho do sonho.

Poema de Marcia Triggi

HORDA




Ainda que invasores
retirassem agaváceas
das grotas secas
(em enlace inesperado) e
uma breve luz iluminasse
as tribos e elementos
por hipérboles e ritmos
ancestrais do tempo

Partículas de sorrateiras
e enigmáticas mulheres,
ressurgidas com o vento,
sob forma de pura imitação
ritmada(ou eivada?)
seriam um grande gineceu
errante a tremeluzir
o início, fim e o apogeu.

E ainda que do gerundio
se fizesse o verbo,
e da esfinge e espera
a roda da vida libertasse
a estrela incipiente,
e o nó na garganta
interditasse a palavra
que se faz vertente

Nenhum cânone ou sêmen
da invasão originada seria
indagação ou até mesmo
a natural resposta
à profanação do mito
e à trepanação dos ossos
reduzida à simples rito.

Guarda pois em cápsulas
de cêra a tua origem ou
o signo da espécie em sulcos
de memória humana solitária,
sob forma de simples geodésia,
na paisagem vegetal que te absorve
ou na dor visceral dessa egrégia.

Poema de Marcia Tigani


Vez para tão só viver este amor.
Que não ouçam-me os acontecimentos.
O tempo é templo, molda. Desconsolo
Corrê-lo, se tudo é renascimento.
Também o aceno de que tudo é vivo
E não mais que uma sirene na tarde.
Também essa paz, acidente lírico,
Que tão logo me educa, invade. Sabe,
Quando uma vírgula quer dizer muito,
Contemplamos mais o conhecimento.
Ama quem não vê no amor seus absurdos.
Não cabe ter com ele outro momento.
Acho que é isso, não sei de mais nada.
Sei que o amor não é só isso. Palavra.

Poema de Guilherme Delgado

CANTO ANÔNIMO



Não é teu o céu pintado
à guache, lápis-lázuli
a iluminar oásis
de cactus e marfim.

Nem é tua a labareda,
a história dessa guerra
coração fincado à terra
e à argila carmesim.

Teus são a planície e o sal
o granito, a ovelha atônita
a mulher e a voz afônica
de tanto chorar sem fim

Pelos filhos e espectros
plasmados a gesso
em momento de recesso
sob tônica e gim.

Não é tua a terra própria
nem a vida, nem a morte
Em tuas mãos há lama e corte
E teu nome é Serafim.

Terá fim esse cansaço?
Ou o fim deste mormaço?
Haverá fim o anonimato
a perseguir Serafim?

Um poema de Marcia Tigani


E se o tempo parasse, seria agora nesse instante, no pulsar letárgico do ponteiro do relógio, no tiquetaque antecessor a campainha tocar, precisamente às nove horas. É o banho de sol no pátio. Desaparecem os maus cheiros. Somem as baratas, os ratos. Agentes não são vistas, nem de tocaia. Mãos, com unhas coloridas, surgem segurando as grades e as mulheres, pouco a pouco, diminuem o som das suas vozes na iminência de saírem das celas. Os pensamentos que nunca param dão trégua à mente. 
Durante aquele minuto de espera, a cadeia procura o silêncio. Entra num tempo zero, onde nada existe e nada acontece. A vida se reinicia justamente com o toque do sinal, recomeça exatamente no momento em que as portas das celas se abrem. Sempre assim, um dia após o outro. E neste instante único, estamos tão fora, ou tão dentro de nós mesmas, que olhamos sem nos ver, porque o que interessa é o pouco de liberdade que ainda nos resta. O banho de sol no pátio.
Pensei que era coisa da minha cabeça. Depois de um tempo aqui, nada parece real, um nevoeiro surge e distorce a visão, a porra toda fica estranha. Sempre estou em dúvida se o que sinto é real, se o que vejo é o que enxergo. Pergunto para Let se na Ala B acontece o mesmo. Ela confirma, diz que não estou louca. 
Em outro instante, tudo acaba. O sinal, o corredor, e estamos na pátio. Zilma comanda ao celular. E as biscas fumam em um canto. Let me passa o cigarro. Conversa, fala um pouco do Ubaldo, o filho mais velho, a avo arranjou um jeito de mandar o menino para o colégio. Let é só alegria.

Prosa de Grazi Brum

CARRANCAS




com as sacas do ano, o medo
refaz seu curso em modorra.
já sem justeza, desova.

um anjo senhor da terra
vê e volca aquela cria;
mais de um brâmane cochicha.

a insônia com seu arquivo
não poupa um só ruído;
doge moço coça a pálpebra

ofertando morte-almíscar.
o abate o cervo ferve:
ira até roça, mordisca.

- onde as ventas, tosco dente
quente cólera e cabeça
que nos salvem destas bestas?

Poema de Caio Graco Maia